Dura realidade
“Assim que virou a cabeça para o lado oposto ao das janelas, um clarão ofuscante encheu a sala. O medo a paralisou em sua cadeira por um longo momento [...]. Tudo veio abaixo, e a Srta. Sasaki perdeu a consciência”.
Interessante. Parece que o parágrafo acima foi transcrito diretamente de um livro de histórias misteriosas, não é mesmo?
“Hiroshima” é a versão-livro da reportagem de mesmo nome, escrita pelo jornalista John Hersey e publicada em agosto de 1946, numa edição inteira da revista americana The New Yorker. A reportagem é uma narrativa, que conta, através de seis “personagens” – Toshiko Sasaki, funcionária da Fundição de Estanho do Leste da Ásia; Hatsuyo Nakamura, viúva de um alfaiate; Kiyoshi Tanimoto, reverendo; Terufumi Sasaki e Masakazu Fujii, médicos, e Wilhelm Kleinsorge, padre – como a bomba atômica destruiu Hiroshima e arruinou milhares de vidas. Só que palavras como “destruiu” e “arruinou” não são utilizadas no livro de forma julgamental nem sensacionalista. John Hersey foi, verdadeiramente, um artista cuidadoso com as palavras. O autor poderia, simplesmente, ter publicado as entrevistas na tradicional forma “pergunta e resposta”. Com certeza, as falas dos sobreviventes seriam comoventes por si só, mas não tanto quanto o modo como ele optou por utilizá-las.
A história é contada de forma única, coerente e incrivelmente artística, digna de um bom livro de ficção – e aí é que está a grande virada: o livro não conta ficção alguma. As descrições ali escritas foram resultado de entrevistas com sobreviventes da bomba atômica. Nada de fechar o livro, com horror, e pensar “Isso não existe” (como freqüentemente ocorria durante minha leitura das obras de Stephen King, o rei do pânico literário). As pessoas que John Hersey entrevistou e transformou em personagens são reais. Passaram pelas provações contadas no livro. As casas da redondeza realmente ardiam em chamas ao mesmo tempo em que “gotas do tamanho de uma bola de gude”, provenientes de uma mistura condensada de poeira, calor e fragmentos de fissão, caíam do céu, como o jornalista descreve. Com o virar das páginas, minhas sobrancelhas franziam ao ler a descrição de uma cena particularmente chocante. Depois de um ano de relatos científicos e biológicos sobre a explosão, a forma tocante e extremamente humana com que Hersey escreveu as 31.347 palavras que compõem sua reportagem certamente fez os americanos repensarem suas próprias estratégias de guerra.
Disponível nas livrarias e em sites para compra, é uma leitura que realmente vale a pena. Não só especificamente para jornalistas ou estudantes do curso, por se tratar de um exemplo de reportagem, mas para qualquer pessoa que acredite no lado humano de todas as situações e que se perceba olhando para o horizonte com olhos úmidos, se perguntando, de tempos em tempos, por que decisões tão destruidoras ainda são tomadas, se tanto corrompem a alma da humanidade.
1 Response
  1. Dennis Mag Says:

    Oi Raquel...estou de passagem pelo seu blog e deparei com este seu ensaio sobre esta obra..fiquei curioso, se era esse o objetivo, você já alcançou. Sem contar que você foi sucinta ao usar o tão conhecido dinamismo que já faz parte do seu estilo de escrever. Sucesso.


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